quarta-feira, janeiro 31

balada do homem humilde

o que espera o homem humilde sentado à beira do lago turvo? ele está sério e imóvel. o homem humilde parece impaciente. ao seu lado, repousam, enfileirados, um cachorro desnutrido, uma garrafa quase vazia, um saco amarrotado de papel pardo, três tocos de cigarro e um par de sapatos marrom.

o homem humilde olha para a frente, mirando um horizonte que não lhe pertence, como lhe pertencem o cão, a garrafa, o saco, as baganas e os sapatos. ele abraça os joelhos e deixa que a cabeça de cabelos sebentos caia por sobre os braços cruzados, apoiando neles o queixo. o cachorro imita o gesto à sua maneira, deitando-se sobre as patas posteriores e acomodando a cabeça magra sobre as patas dianteiras esticadas adiante do corpo.

o homem humilde está sério e imóvel. ele parece impaciente. o que espera o homem humilde diante do lago turvo? ele levanta a cabeça, cruza os braços sobre o peito e estira as pernas na direção da água. o cachorro se ergue sobre as patas dianteiras e mantém as traseiras coladas ao chão empoeirado.

o homem humilde agora apanha a garrafa com o braço esquerdo. leva-a à boca quase sem dentes e sorve o último gole do conhaque cor-de-pôr-do-sol. de súbito, levanta-se e é novamente acompanhado pelo cão, que se espreguiça com um grunhido agudo. em pé, mantém o olhar fixo no horizonte que não é seu, enquanto o cachorro o espia. o homem humilde está sério e imóvel. ele parece impaciente. o que espera o homem humilde diante do lago turvo?

ele dá um passo para trás e mais outro. o cão agora balança o rabo pelado. o homem humilde se agacha e junta duas pedrinhas pequenas, que atira no lago, uma após a outra. observa os círculos na água e cata mais duas, agora maiores. mas não repete o lançamento, guardando-as no bolso direito da calça cinza encardida. escolhe outras três, também grandes, e mete-as no bolso esquerdo.

de dentro do saco de papel amarrotado, tira uma sacola plástica; dela, uma cabeça depenada de galinha, com que acena para o cachorro para, em seguida, jogá-la no sentido oposto ao lago. o cão fareja o ar e dispara em busca do presente. o homem humilde volta-se de novo para o horizonte. o homem humilde está sério e imóvel. ele parece impaciente. o que espera o homem humilde diante do lago turvo?

o homem humilde lamenta não ter mais fósforos para acender as últimas baganas. ele não olha para trás enquanto calça os sapatos e vai entrando devagar na água. agora, só enxerga o horizonte que não lhe pertence. cada vez mais fundo, lá vai o homem humilde, ao mesmo tempo em que o cachorro sacode o pescoço da galinha no ar. o homem humilde afunda sem pressa e nunca mais volta. o homem humilde esperava a desesperança.

2 comentários:

Marcia disse...

um cozido primoroso, dona vagem.

Ana F disse...

Lindo! Trouxe-me lágrimas aos olhos...