sexta-feira, novembro 17

meu amigo, o marques

o gilnei foi sempre o primeiro alguma coisa na minha vida. e antes que vire sacanagem, eu explico. ele foi o primeiro cara que me mostrou o quanto era bacana a linguagem radiofônica. foi com ele a primeira das pouquíssimas brigas que tive no trabalho - com direito a porta fechada depois do expediente, vozes alteradas, olhos esbugalhados, rostos vermelhos, aortas salientes e dedos nos narizes. tudo assim, no plural, como convinha a um geminiano irascível e uma virginiana por demais contida.

foi junto com ele que devorei minha primeira vitela com batatas, lá no copacana, fartamente afogada em goles de valpolicella - e isso, mais tarde, acabou virando um ritual pra gente. foi o primeiro amigo a ouvir coisas que eu só contaria pra uma amiga. foi dele o telefonema empolgado que recebi há uns 12 ou 13 anos - 'biiiiiiiiiiiii, tu já ouviu falar num troço fantástico chamado world wide web?'. foi o gilnei o meu primeiro contato no icq. e foi pra ele o primeiro e-mail que mandei na vida.

foi com ele que fiz minhas primeiras compras pela rede - numa loja chamada cdnow, que agora atende por amazon. os meus eram dos pixies e do sonic youth e os dele, do velvet e do depeche mode. há dez anos, o gilnei foi o primeiro cara que me falou que afrociberdelia, do chico science, ia ser um clássico num dia não muito distante.

foi com ele e mais um monte de gente querida que passei meu primeiro réveillon na pinheira. foi com ele e mais um monte de gente querida que vi o calendário virar dos 99 pros 00, no jardim da casinha-com-cara-de-garopaba em que morei no ipanema, na zona sul da sorridente capital. foi ele o primeiro amigo a assar um churras debaixo do alpendre dessa casinha. e foi uma verdadeira epopéia: chovia furiosamente, inclusive sobre a churrasqueira. o gilnei, santanense brioso, manejou a espetarama brilhantemente com água pelos tornozelos. minha única obrigação era puxar a água com o rodo de vez em quando e manter sempre cheio o copázio de ceva do assador. a carne ficou divina!

foi o gilnei o primeiro amigo a dizer que tal pessoa, que se mostrava muy boazinha, carregava uma nuvem escura, feia e do mal. e essa tal logo depois colocou mesmo as manguinhas de fora. ele foi o primeiro a insistir pra eu escrever pro site dele, o baguete, lááá no início, e eu nunca quis porque não me achava à altura do talento que ele tinha.

no mesmo dia em que eu apaguei meu último cigarro, o gilnei, heavy user dos pitos, recebeu o sombrio diagnóstico de câncer na rinofaringe. isso foi há três anos e um mês. desde então, não houve um só dia em que eu não lamentasse e sofresse com a provação medonha por que ele - valente, otimista e altivamente - passava, sempre com a admirável fortaleza da taís por perto, mais a família, unidíssima, e, ao largo, pra não trazer mais desconforto, um séquito de amigos fiéis e apaixonados, como eu. eram cirurgias, quimios, radios, efeitos colaterais, exaustão, privações de todo tipo, depressão, incapacidades mis, inquietações, afastamentos, ausências.

mesmo com tudo isso, o tal câncer não recuou. virou metástase, foi pros pulmões, foi pros ossos, trouxe ainda mais dor. aí, logo na quarta-feira, um dia depois de eu voltar pra casa, o gilnei se transformou no primeiro amigo que eu precisei velar. ele foi embora e levou junto um pedação macio e cálido e divertido e frenético e intenso e bêbado da minha história. por aqui, fica só um rombo irrecuperável e uma saudade sem tamanho. mais as lembranças bacanas e gargalhantes e a certeza de que, ainda que o tempo tenha sido mínimo, valeu cada segundo à volta do marques véio (um dia, em vez de 'gilnei' usei o 'marques' e ele me confessou, emocionado, que sempre quis ser chamado assim), meu primeiro grandessíssimo amigo.

4 comentários:

Ana F disse...

Linda homenagem...
Beijo no coração,
Ana FM

CarolBorne disse...

Belíssimo e emocionante.
Que bom saber que, mesmo em tempos bicudos de falta de generosidade e afetos sinceros, perdurem sentimentos que nem mesmo a velha senhora da foice é capaz de aniquilar.
Cada palavra tua é puro coração.
Bacio.

Léa Aragón disse...

Putzgrila, Coelhinha
Assim tu fica órfão de mãe. Quase tive outro troço de tão emocionada que fiquei. Lá onde estiver, o Gilnei deve estar emocionado tb.

mimi aragón disse...

carol e mamãe, é como me disse a taís na semana passada: o marques (ela chamava de udi, lembram?) era um cara tão espaçoso que agora ficou um buraco grande demais, né? e mamy, vou atribuir o 'órfãO' à emoção da hora... rerere!