segunda-feira, novembro 26

de mãos dadas

não lembro muito bem como foi. eu era um toquinho, tinha uns 4 anos, no máximo. a maninha, ainda solteira, adorava brincar de mãe comigo e com a carol, as primeiras sobrinhas. então, numa tarde, eu fui com ela ao súper.

metida a adultinha, não quis me aboletar no carrinho: preferi ir no chão, de mão com aquela tia linda e engraçada e sempre cheia de novidades coloridas e modernas.

sei que a gente entrou num corredor, eu sempre grudada na mão dela, e ficamos (o que me pareceu) horas escolhendo alguma bobagem pra mim. dali a pouco, fui perguntar qualquer cousa pra ela e, quando olhei pra cima, não era mais a tia que segurava a minha mão: era uma mulher que eu nunca tinha visto na vida.

em pânico, me soltei da estranha e procurei a maninha, que tava no início do corredor, igualmente assustada, me catando com os olhos. corri pra ela e agarrei bem firme aquela mão familiar, pra não soltar tão cedo. até hoje não sei o que rolou. devo ter me distraído, destrambelhadinha desde pitoca, e trocado de mão sem perceber.

só o que restou daquela experiência foi a sensação apavorante que tive ao olhar pra cima e não reconhecer quem me segurava. uma tontura desagradável, o sangue congelado nas veias, o chão sumindo, o coração como que despencando no vácuo, trocando de lugar com o estômago embrulhado.

rigorosa e exatamente o que senti na quinta passada, dia 22, quando tocou o telefone e era a minha mãe com a surreal notícia de que a maninha tinha ido embora pra sempre, depois de não conseguir voltar da quarta parada cardíaca durante uma cirurgia de lipoaspiração em floripa, onde ela tinha se escondido há oito anos, depois de perder a filha tão amada.

o mundo parou ali pra minha cabeça rodar feito há 32 anos. na seqüência, vieram todas as cenas que ficaram gravadas da nossa relação nem sempre calma, mas cheia de passagens emocionantes e, na maioria da vezes, ternas e felizes.

numa noite quente do final de 1977, eu entrando de aia na nave da igreja santa terezinha, junto com a carol e a fernanda, no casamento da maninha com o caetano.

a minha boca aberta diante da sala de bagunça do primeiro apê deles, na descida da ramiro: toca-discos reluzentes, equalizadores, amplificadores, luzinhas piscantes, a maior coleção de vinis que eu já vi na vida, os inovadorérrimos videocassete betamax e o atari plugados na tevê, generosamente liberados pra nossa curiosidade infantil.

a maninha, aproveitando o sono pesado do caetano, pintando as unhas das mãos dele e depois dizendo 'ah, a acetona acabou e eu não posso sair pra comprar outra, porque tô tomando conta das gurias. vai lá na farmácia e compra tu mesmo, que eu tiro o esmalte pra ti. hahahahaha!'. e ele foi.

aquele natal em que eu e a carol ganhamos dos dois tios adorados uma barraca de brinquedo que virou nosso refúgio favorito.

todos os natais na casa da minha vó, quando eles chegavam lotados de sorrisos e pacotes brilhantes pra todo mundo.

eu furiosa, uma criancinha indomável que, quando contrariada, me ajoelhava e batia a cabeça no chão, aos berros. até o dia em que ela repetiu o ritual, bem na minha frente, e eu pude ver o quanto aquilo era insano. e nunca, nunca mais desfilei com galos gigantes na testa.

eu dizendo pra ela, que sempre tinha palpite pra vida dos outros, meu primeiro 'vai à merda, pô!'.

ela na maternidade, toda babada com a tão desejada tetê no colo, depois de três sonhos precocemente interrompidos. e eu, que de tão emocionada, ‘fiquei mocinha’ exatamente naquele 20 de maio de 1983.

nós em alegre bando num comboio pra torres, no verão de 84: eu e o caetano na frente, de bugue amarelo lotado de traquitanas, e ela atrás, com a tetê, num voyage 0km entupido de felicidade.

naquele mesmo verão, as nossas lágrimas comovidas, ouvindo o que a gente imaginava serem as primeiras sílabas da tetê (que a maldita paralisia cerebral nunca permitiu que se transformassem em palavras inteiras).

eu indo dormir na casa deles e os jantares suculentos que a gente inventava com as sobras da geladeira.

ela me levando no colégio, com a tetê toda risonha na cadeirinha do banco de trás do auto.

o meu orgulho de dizer pros amigos que a minha tia já tinha faturado ‘uma porção de prêmios de propaganda, até aquele tal de profissionais do ano, sabem?’.

ela, em choque, abraçando o caixão do caetano, depois do acidente estúpido que nos arrancou aquele cara bonachão e pleno de vida. e que me roubou o tio que foi meu pai, quando o verdadeiro preferiu outros caminhos.

de novo em torres, no verão seguinte à perda do caetano, a maninha clicando o meu retrato mais bonito de todos os tempos.

ela, parceira e debochada, me levando pra noite - uma festa chamada 'calor na bacurinha', em que, pra honrar o mimoso mote, cada uma foi pra um lado com seu respectivo rapazola. fizemos misérias e, depois, morremos de rir contando os detalhes uma pra outra.

ela, guerreira e devotada, criando sozinha uma filha linda, doce e carinhosa, que não falava, não caminhava, não quase tudo.

eu abraçada nela, no velório da tetê, dizendo 'tu não tá sozinha, minha véia, todo mundo aqui e eu te amamos muito'.

em floripa, a gente tomando cerveja num dia ensolarado no campeche, e lamentando a partida da cássia eller.

eu e a eva num aniversário dela, toda felizona, rodeada de amigos fiéis e canecões de chope.

no hospital, com a vó milinha perdendo a batalha de 15 anos contra o alzheimer, ela nervosa, fazendo cena com a chegada da minha mãe, com quem a relação sempre foi problemática e instável. eu levantando a voz com ela e pedindo respeito pelos últimos dias de vida da vó. eu magoada e, covarde, sem fibra pra limpar os pratos.

o e-mail que recebi dela no meu aniversário deste ano, que dizia bem assim:

Oi, Mimoca, minha sombrinha.

Feliz Aniversário, queridona. Tudo de bom de tudo que é bom pra ti, minha véia, ops, minha jovem sobrinha. Rsssss. Não te vi online e pensei: como posso beijar a minha sobrinha querida?

Aceitas beijinho desta tia ausente, bipolar, esquisita? Que o teu dia seja lindo e que o universo conspire para que todos os teus desejos se realizem neste novo ano. Beijos na Eva. Se vierem pra cá ou por aqui me avisem. Tenho saudades das risadas.

Te adoro, viu?

Beijooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo

Maninha


e que eu, empedernidamente orgulhosa, não agradeci.

e agora esta ausência que não tem mais volta. e a raiva de mim mesma por não ter tido o peito e a humildade de dizer a tempo ‘ei, sua velha tia papuda ausente, bipolar e esquisita, a vida é curta, e é uma imbecilidade a gente perder tempo remoendo bostas. eu te amo, viu? te amo pra caralho!’.

apesar de não acreditar, tudo o que eu quero é que exista, sim, alguma cousa qualquer depois da vida. e que a maninha agora more numa estrela tão bonita quanto ela era. e, de lá, tenha a certeza de que eu vou sentir falta demais de segurar a mão dela.

fica bem aí, tia papuda, que, por aqui, a gente vai se virando.

12 comentários:

Marcia disse...

chorei.

mimi aragón disse...

é quase só que tenho feito, pinta. valeu a solidariedade, viu?

Maroto disse...

li teu post no trabalho, tive que ir ao banheiro enxugar os olhos.

Tenho certeza que ela também curtiu muito ser tua tia e que isso fez a vida dela ter valido ainda mais a pena, viu?

Anônimo disse...

*




tue carinho me derrubou com a força de uma tsunami.
emocionante.
emocionante confirmar aquilo que já sei: teu universo tem uma força e uma riqueza avassaldoras.

boca seca.


beijo.
Sean




*

CarolBorne disse...

Puta merda...
Sem palavras.
Preciso assoar o nariz, lavar a cara e tomar um Rivotril.
Te amo pra caralho.

mimi aragón disse...

urubu(a): desculpa pelo mico... e valeu o afago!
sean: querido da minha vida! até que eu engano bem, né?
carol: também te amo, er. sobrou um rivotril pra mim?

Gislaine Marques disse...

Poderia dizer que o texto é lindo, poderia dizer que entendo tua dor, poderia confessar que tbm chorei e dizer mil coisas. Vou falar que aproveitar mais a vida ao lado de quem gosta é algo que não podemos esquecer nunca. É tudo rápido demais. Adorei que abriste minha caixa de gis. Tbm te linkei. Eu tinha esquecido que a maninha era tua tia. Fiquei muito chocada com a notícia do falecimento. Que cousa! Bom, mantenha contato com quem gosta de ti como eu e tantos outros: essa é a grande lição! ;-)

mimi aragón disse...

pois é, gis, jeito foda esse de aprender a ser menos dura... mas valeu o carinho, queri. prometo estar mais presente, sim, nem que seja assim, virtualmente. adorei tua caixa! saudade e beijão.

Liza Mello disse...

oi, eu sou sobrinha da Gis e acabei vindo parar aqui. Em primeiro lugar: BAH! muitooo bem escrito!
segundo: esse texto me trouxe v�rias lembran�as... tb me perdi num supermercado qdo crin�a e lembro daquele p�nico total! e esse post me lembrou (a morte do)o meu tio, irm�o da Gis.
um abra�o!

mimi aragón disse...

oi, liza! obrigada pela visita e a gentileza.
tu não sabe, mas ouço falar sobre ti desde que tu era bem pequeninha. teu tio, o gilnei, foi um amigo muito, muito querido. ele sempre me contava sobre as aventuras de vocês juntos, te curtia pacas. e faz uma puta falta pra todo mundo, né?
vou te esperar por aqui outras vezes. beijão.

Liza Mello disse...

po, mimi! o q tu bota nesses legumes?!.. agora chorei de novo! hehe

aquele amor era(é) mútuo!

mimi aragón disse...

ô, liza, desculpae! já deves ter lido, que foi parar lá no memorial, e não é pra tu chorar mais, mas os legumes de novembro do ano passado guardam um post pra ele. apesar de ser colorado, era um baita cara o teu tio macaco. :o)